Cuidados ao usar a expressão “apesar”
- Fernando Cesarotti
- 15 de fev. de 2022
- 2 min de leitura
Locução é muito comum no vocabulário corrente e aparece frequentemente em textos escritos, mas nem sempre com respeito ao sentido literal

Em textos escritos, especialmente se for em ambiente acadêmico, ou seja, valendo nota, a expressão “Apesar de” deve ser usada com muito cuidado. É preciso obedecer a duas condições:
a sequência da frase precisa ter um sentido negativo, afinal, “apesar” vem de “pesar”, ou seja, de uma coisa ruim, luto etc. Então, jamais escreva “apesar da vitória” ou "apesar da diminuição da criminalidade", porque estamos falando de coisas boas. Prefira “mesmo com a vitória”, “mesmo com a redução da criminalidade”, ou então altere a construção da frase: “A redução da criminalidade não resolveu...”
a frase seguinte precisa ter conexão de sentido com a primeira, afinal estamos estabelecendo uma relação de causa e consequência. Por exemplo, jamais use “apesar do aumento da criminalidade, o Brasil verificou a redução do valor do dólar e do euro”, uma vez que são dois assuntos que não têm conexão direta.
A ideia desse texto surgiu uma vez, quando eu estava corrigindo provas de Cultura Literária na universidade. E em várias delas (será que era cola? Na época não percebi), alunos escreveram frases como a abaixo:
“Apesar de conservador, Nelson Rodrigues escrevia ótimas crônicas sobre o cotidiano carioca na década de 1960.”
Vejam, não há nenhum erro de informação na frase, Nelson era conservador (ainda que essa seja uma simplificação de sua obra e de sua biografia) e escrevia muito bem , mas:
o fato de ser conservador, progressista, comunista, de extrema-direita ou simpatizante de qualquer outra ideologia política aceita em sociedade não é ruim por si; na melhor das hipóteses, expõe um juízo de valor de quem escreve (que pode não ser esse, inclusive); na pior, está errado mesmo.
ainda que ser conservador possa ser ruim na visão de simpatizantes de outras correntes políticas, não existe causa e consequência entre visão de mundo e capacidade de escrever ótimas crônicas.
Chico Buarque dá o exemplo correto:
“Apesar de você amanhã há de ser outro dia”
“Você”, como todos sabemos hoje (embora a censura tenha levado alguns meses para descobrir na época) é uma referência à ditadura militar que governava o Brasil quando Chico escreveu a canção, em 1970.
Ou seja, uma coisa ruim. Mas, apesar de quem estava no poder naquele momento, o amanhã seria melhor. Ou seja, Chico, além de gênio musical, caprichou na gramática e na coerência textual.
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